Histórias

"(...) O pior que há para a sensibilidade é pensarmos nela, e não com ela. Enquanto me desconheci ridículo, pude ter sonhos em grande escala. Hoje que sei quem sou, só me restam os sonhos que delibero ter. (...)" - Fernando Pessoa

25.8.05

Viagens

Passaram-se alguns anos depois de se terem visto pela última vez. Eram dois miúdos na idade das dúvidas e dos medos (se é que existe uma idade própria para determinadas atitudes ou sentimentos). Revê-lo agora, ambos já adultos, trouxe-lhe uma sensação de frenesim inexplicável; ou talvez não... talvez a história inacabada fosse o motivo da vontade de aproximação que sentia naquele momento.
A noite quente de Verão e de festa, o cheiro do eucalipto que ornamentava a barraquinha das rifas e o burburinho da música deixavam-na leve. Longe dos olhares de todos os dias sentia-se diferente, paparicada. "Porque não um cumprimento" - pensou. E ganhou coragem. Mesmo a adivinhar a proximidade (ou talvez essa fosse a explicação que ela queria dar a si mesma), ele olhou na sua direcção e quando a descobriu no meio das pessoas, sorriu. Os olhares fixaram-se numa mestria quase matemática. A ela pareceu-lhe o sorriso mais bonito de sempre.
"Há tanto tempo! Como é que estás?" - perguntou. E trocaram, durante uns minutos, palavras triviais daquelas que se dizem quando se quer dizer tudo menos o que se está a dizer. Depois das "borboletas" (que faziam uma rave na sua barriga) se acalmarem perguntaram-se das novidades, das metas, dos novos sonhos. E falaram dos sonhos antigos; ambos sabiam que havia ainda coisas por esclarecer, por resolver. Não que isso fosse mudar o rumo de tudo mas poderia, pelo menos, encerrar o capítulo último. Ela precisava de lhe dizer (isto tornou-se claro como água depois do acidente e das perdas dos dois) o quanto ele era importante e o seria sempre. Há coisas que não se esquecem e pronto!
A esta altura, a vontade do que nunca havia sido era evidente. O coração tinha sido posto em cima da mesa, quase à disposição. As confissões em jeito de desabafo deixára-os meio inebriados, a sentirem-se mais próximos do que alguma vez tinham estado. Depois de um mimo que não soube chegar mais cedo, beijaram-se. Ela sentia-se a protagonista numa comédia romântica. Beijava e era beijada com uma cumplicidade que nunca sentira; havia gargalhadas dentro de si. Por momentos, fitaram-se; os olhos, as mãos, a boca, tudo sorria...
Ao longe ouvia-se Viagens, do Pedro Abrunhosa:

"... olhar para ti e ver o que eu vejo, olhar-te nos olhos com olhares de desejo, eu não tenho nada mais p'ra te dar, esta vida são dois dias e um é para acordar, das histórias de encantar, das histórias de encantar..."

Fora uma das melhores noites da sua vida. E nunca mais o viu.
M.